Os céus sobre o Rio

  • Posted on: sab, 05/12/2012 - 17:10
  • By: efeefe

No início de março, fui convidado pela organização do Circuito arte.mov a participar de sua programação no Rio de Janeiro: um debate na capital - após a oficina de mapeamento aéreo com Andres Burbano -, seguido no dia seguinte de uma incursão à Nuvem, hacklab rural em Visconde de Mauá - que também sediaria a mesma oficina. Eram atividades que me interessavam porque ligadas àquilo que no Labx do Festival CulturaDigital.Br eu tinha chamado de "cartografia experimental". Na época, até havíamos tentado trazer Burbano para o Labx. Ele havia participado do arte.mov em 2010, quando desafiou os organizadores locais a trabalharem "a arte de voar" como tema exploratório para alguma edição futura do evento. A programação que acompanhei no Rio estava moldada por esse desafio.

Cheguei na tarde de sexta-feira e fui direto ao espaço onde aconteceria o evento - um daqueles lugares do Rio que deixam a gente sem fôlego pela composição de construção e paisagem. No topo de Santa Teresa, o Parque das Ruínas é uma antiga mansão transformada em espaço cultural. Estruturas de metal fundem-se a paredes com tijolos expostos, em cujas frestas se instalam samambaias. Do antigo sótão, tem-se uma visão panorâmica - Centro, ponte Rio-Niterói, zona sul, Cristo Redentor e floresta.

Desviei da multidão de turistas trajados de bermudas, meias e papetes que acabava de descer de mais um ônibus fretado, subi a escada e encontrei o pessoal envolvido com a oficina. Acompanhados por um número de participantes - Bruno Vianna e Cinthia Mendonça, ambos articuladores da Nuvem, em Mauá - acompanhavam  Andres Burbano, artista e pesquisador colombiano residente nos Estados Unidos (que eu entrevistaria no dia seguinte). Burbano trouxe da interação com o Grassroots Mapping o know-how da criação de balões a partir de um material inusitado. Os "cobertores de sobrevivência", utilizados para minimizar a perda de calor do corpo em situações de emergência, são retângulos de cerca de dois metros por um e pouco, feitos de um filme de poliéster reflexivo. É um material extremamente leve, barato e relativamente resistente.

Subi ao terraço, onde encontrei Lucas Bambozzi e Fernando Velázquez, que coordenavam as ações do dia. Lucas também estava envolvido com a Breve História do Agora, apresentação do grupo FAQ que aconteceria à noite no auditório do local. Circulei um pouco para conhecer melhor o Parque e voltei ao espaço da oficina, onde já testavam o equilíbrio do balão.
Eu perdi o começo da oficina no Rio, então relato o processo que vi dois dias depois em Mauá. O primeiro passo é prototipar em papel esquemas de dobraduras que permitam montar balões a partir desses cobertores. Em seguida, são montados os balões propriamente ditos, utilizando-se bastante fita adesiva e barbantes. Depois, cada balão é enchido para testes - com um aspirador de pó invertido ou um secador de cabelos - quando verificam-se eventuais vazamentos, seu equilíbrio e a sustentação. Por fim, um cilindro de hélio comprimido é utilizado para encher o balão, e prende-se na base dele uma câmera, geralmente dentro de um saco plástico transparente. Não é qualquer câmera: Burbano utiliza os modelos que permitem a instalação do CHDK  - firmware alternativo que permite controlar diversas opções avançadas, mesmo em câmeras de baixo custo. A câmera é configurada (ou ajeitada, com uma bela gambiarra que utiliza atilhos e um pedacinho de madeira) para fazer fotos contínuas, e o balão é lançado ao ar preso por um barbante. A ideia é fazer suficientes fotos aéres que permitam a composição de mapas do entorno.

No Rio, o balão foi solto com alguma pressa. A noite se aproximava, o que ameaçava a captação de imagens com luminosidade suficiente. Quando finalmente alçou voo, foi uma festa. A empolgação no sótão da antiga mansão lembrava um bando de crianças soltando sua primeira pipa. A impressão era reforçada pelo forte vento que soprava lá em cima - o primeiro balão chegou a escapar do fio, para ser recuperado alguns minutos depois em uma casa vizinha. Mais uma tentativa, e aí tudo funcionou bem. O balão fez alguns voos (um OVNI fantástico, emoldurado pela paisagem da cidade maravilhosa) e gerou centenas de imagens, ou mais. Em um dos últimos voos um helicóptero passou e voltou. Alguém falou "olha a aeronáutica chegando pra acabar com a brincadeira". Mas era só algum curioso: na aproximação frontal, vimos um braço acenando lá de dentro, antes do helicóptero sumir a caminho de Botafogo.

A noite caiu e começamos o debate, um "fórum de apresentação de ideias e projetos".  Assim que ligaram o projetor, som, refletores e outros equipamentos, a energia caiu. Aparentemente, a rede não segurava a carga. Começamos na voz livre, depois voltou o projetor e por fim e microfone. Paola Barreto  mostrou diversas explorações a partir de câmeras de vigilância, envolvendo intervenções com atores e outras ações. Léo Póvoa e Ricardo Cutz falaram sobre projetos, em especial o AM/PM, aplicativo para smartphones que mede o tempo de trabalho material em tempos de dependência de redes informacionais. Em seguida foi Lea Rekow, gringa baseada no Rio. Ela tem um projeto na Rocinha, dedicado a criar jardins em áreas livres, que se utiliza de smartphones para identificar trilhas percorridas e encontrar pontos com potencial para se tornarem novos jardins. Em seguida eu contei um pouco sobre a MetaReciclagem e sobre minhas intenções em Ubatuba com o núcleo Ubalab. Tentei apresentar a ideia (ainda, e até hoje, pouco mais do que um esboço à espera da possibilidade de maior dedicação) de coletar dados sobre o trajeto que faz o lixo doméstico coletado na cidade até chegar a Tremembé, no alto da serra - depois de percorrer mais de cem quilômetros nos quais deixa um rastro de fumaça de diesel e cheiro de chorume. Após as apresentações, acabei ficando incumbido de mediar o debate. Na sequência, assistimos à apresentação do grupo FAQ e saímos para jantar em um restaurante de Santa Teresa.


No sábado, nos reunimos - eu, Cinthia, Andres, Rodrigo Minelli, Lucas e Velázquez - para o trajeto até a Nuvem. Bruno já havia ido, de carro. Embarcamos na van, que tomou um rumo estranho. Descobrimos que o motorista-empreendedor tinha entendido que queríamos ir até Mauá, bairro de Magé, na área metropolitana do Rio. Era por isso que ele tinha dito que não precisava de hospedagem - imaginou nos deixar lá e voltar no mesmo dia para casa. Negociou com a patroa pelo celular e topou a viagem mais longa. Percorremos a Dutra, pegamos a saída para Penedo e subimos a serra. No trajeto final, conversei bastante com a Cinthia sobre a ideia do "hacklab rural" e todas suas implicações. O clima ali já era o tropical de altitude - araucárias, quaresmeiras, mata atlântica com uma umidade mais gelada. Cinthia apontou o rio que faz a divisa com Minas Gerais. Toda a região - Mauá, Maromba, Maringá - tem cerca de seis mil habitantes. População rural tradicional, esotéricos, neorrurais e outros. Gravei alguns trechos, que vou transcrever quando possível. Encontramos um monte de pontos em comum entre a realidade e as projeções deles em Mauá e meus próprios anseios em Ubatuba.
Chegamos no meio da tarde, debaixo de chuva. A van quase não chegou a nosso primeiro destino: o restaurante Truta na Floresta. Trutas em várias apresentações, com diversos molhos e acompanhamentos. Marcus Bastos e Lula Fleischmann nos aguardavam por lá. Depois do almoço, fui no carro com Bruno, Cinthia e Velázquez. No meio do caminho, percebemos que um pneu estava furado. Para satisfazer plenamente a lei de Murphy, a chuva continuava forte. Trocamos pelo estepe, e finalmente tomamos a direção do Vale do Pavão.
Chegamos na casa para descobrir que a energia tinha acabado, provavelmente por causa da chuva. Conheci as instalações aos poucos, à base do tato, tropeços e luz de velas. A Nuvem, em sua atual encarnação, é um lugar aconchegante, cercado por um jardim amplo. Lá no fundo, ouve-se o som de um córrego. Do outro lado, um galpão que abriga a composteira. A casa é ampla e confortável - sala grande, lareira, mesa de jantar, quartos e banheiros arrumados, uma bancada com computadores. Lula e Cinthia contam que os primeiros residentes da Nuvem chegaram e perguntaram "onde fica o laboratório", ao que elas responderam: "dentro do armário". Não era em sentido figurado - a despensa comporta um monte de ferramentas, aparelhos e materiais eletrônicos. A conexão à internet - que naquela noite só funcionaria mais tarde, quando a energia voltou - é lenta, pelo que eles recomendam que as pessoas levem todos os arquivos que precisam para qualquer atividade. Mas o silêncio e o clima de cooperação dentro da casa compensam a baixa conectividade.
Em frente à lareira, sob goles de cachaça artesanal, conversamos bastante sobre possibilidades de novos projetos, trocando referências e articulando algumas ações. Comentei sobre a necessidade de sistemas de informação ambiental e gerenciamento de emergências. O pessoal do arte.mov fez experiências com seu recém adquirido AR Drone. Foram diversas tentativas de controlar o drone, até que identificaram o que não funcionava. No dia seguinte, uma tentativa de sobrevoar a casa daria errado. Em determinado momento, o motorista da van perguntou "alguém aqui é casado? Vocês fazem isso em casa?". O limite da brincadeira, do comportamento geek de meninos com seu brinquedo novo, da exploração de novos imaginários. Lucas mostrou as impressionantes imagens de um protesto na Polônia capturado em vídeo além da barreira policial por um desses drones. Um monte de implicações aqui: o fim do monopólio das imagens aéreas tomadas em tempo real durante acontecimentos relevantes, mas por outro lado um certo incômodo com a crescente popularidade desse tipo de tecnologia. Já antevi um monte de usos questionáveis desse tipo de coisas. Mantenham suas janelas fechadas!

Ao fim da conversa, chegamos (como talvez fosse esperado) ao tema mobilidade como denominador comum de diversas iniciativas a serem desenvolvidas no futuro. A Nuvem havia armado com parceiros locais um jantar baseado em "alimentação viva": gergelim desperto, purê de inhame, shimeji rosa, kibe de forno com abóbora e outros quitutes naturais.

No domingo, nos concentramos no espaçoso ginásio da escola pública de Mauá para outra oficina de mapeamento aéreo. Bastante gente da cidade participou, criou e inflou os balões, prendeu a câmera e saiu fazendo imagens. Ao contrário da oficina no Parque das Ruínas, espaço ali não era um problema: em frente à escola, um grande gramado permitia voos cada vez mais audaciosos... que acabaram com dois OVNIs perdidos no céu da Serra da Mantiqueira depois que suas linhas arrebentaram. Eles carregaram consigo centenas ou milhares de imagens, que talvez alguém ainda encontre. Fica como nossa contribuição aos mistérios de Mauá.


Este artigo foi escrito com o apoio do Centro Cultural da Espanha em São Paulo.